Desenvolvimento Rural: a história de Dona Raimunda, a quebradeira de cocos e de paradigmas
Qualquer pessoa pode contar histórias, desde que tenha em mente que suas palavras terão importância enorme e darão vida aos pensamentos de uma personagem e poderão motivar mudanças significativas na vida do leitor. Com atenuantes de dor e alegria, de sofrimento e de vitórias, a história da Dona Raimunda Quebradeira de Coco, uma trabalhadora rural, líder comunitária e ativista política brasileira se mistura com a de muitas outras mulheres rurais, da roça, das lavouras, das comunidades quilombolas e indígenas.
Raimunda Gomes da Silva, 66 anos, nascida e criada em Novo Jardim (MA), filha de agricultores, com 10 irmãos, casou-se aos 18 anos, teve uma vida difícil, decidiu abandonar o marido 14 anos depois e criar sozinha os seis filhos, trabalhando como lavradora. Baixinha de traços e personalidade fortes, na sua fala simples, mistura temas do cotidiano e toca em feridas sociais em seus discursos, em comunidades agrícolas ou palácios, sem perder o tom. Nunca estudou, mas é uma líder nata, de visão política apurada.
Quando se quer tornar algo sensível a um grupo é necessário aproximar as pessoas com o mesmo objetivo para que elas se identifiquem e se abram para ouvir e compartilhar particularidades, e foi o que Dona Raimunda fez. Em 1991, fundou ao lado de outras mulheres a Associação Regional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio (Asmubip). Começaram a promover encontros para discutir seus direitos, primeiro nos municípios mais próximos e, em seguida, nos estados vizinhos. Logo, em 1992, criaram o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), que hoje é atuante nos estados do Pará, Tocantins, Piauí e Maranhão.
Cerca de 300 mil mulheres vivem da coleta do coco babaçu, nativo da região. Da amêndoa, extraem o óleo vegetal, com o qual cozinham e produzem sabão. Da casca do coco, fazem lenha; da palha da árvore, cestos. Nada se perde. Essas mulheres só utilizam para si o que sobra da produção. O trabalho da coleta e a quebra do coco é uma tarefa difícil, pouca é a amêndoa comercializada no final do dia.
Cheia de fibra tal como dos cocos dos quais arrancou o sustento, Dona Raimunda trabalhou, lutou, venceu. O destino que a esperava era o mesmo reservado a todas as mulheres que se gastam: de sol a sol e ano após ano. A vida não dá trégua para quem luta. Sempre foi lá e fez o melhor que podia.
Aos 20 anos aprendeu a assinar o nome e tornou-se porta voz de 400 mil trabalhadoras rurais extrativistas, em defesa do meio ambiente e dos direitos das mulheres. Em sua trajetória, foi responsável pela Secretaria da Mulher Trabalhadora Rural Extrativista do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS).
Devido a atuação na defesa dos direitos das mulheres trabalhadoras da região do Bico do Papagaio, recebeu o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal do Tocantins e prêmios como o Diploma Mulher-Cidadã Guilhermina Ribeira da Silva (Assembleia Legislativa do Tocantins) e o Diploma Bertha Lutz (Senado Federal) concedido às mulheres que ofereceram relevante contribuição na defesa dos direitos da mulher e questões de gênero no Brasil. Em 2005, integrou a lista mundial das mil mulheres que concorreram ao prêmio Nobel da Paz.
Hoje, está em seu segundo casamento, com o também aposentado Antônio Cipriano, e adotou o sétimo filho, Moisés, órfão de um líder sindical assassinado na década de 1990. Devido à idade avançada e às doenças, Dona Raimunda está longe do ativismo, mas afirma que há outras mulheres à frente das causas nos estados.
A ex-quebradeira de coco já quase não sai mais de sua casa, por isso, ela afirma que é difícil o contato com as demais quebradeiras. “Eu só vejo elas, quando vem aqui me visitar. Eu queria que elas tivessem mais acesso à saúde, aos estudos, tivessem uma moradia melhor, melhor qualidade de vida, por que isso ainda não é visto como profissão e dificulta na hora de aposentar”, avalia.
Ela ainda expôs que a diferença das quebradeiras da época dela para as de hoje em dia é que agora elas têm mais informações. “Hoje em dia melhorou por que elas têm mais conhecimento das coisas”, informa. Nesta luta incentivou o povo a se organizar e crer em sua própria força, embasada na fé.
Dona Raimunda não para. Ela é autora de várias poesias e músicas, onde denuncia a injustiça imposta ao povo do campo pela estrutura opressiva e expressa a esperança de um mundo diferente. A sua trajetória virou a trama central do vídeo-documentário “Raimunda, a quebradeira” e tem muito de sua história e das companheiras quebradeiras de coco contadas na produção do cineasta Marcelo Silva.
Hoje, mesmo sem enxergar e com dificuldades de sair de casa, ela permanece firme nos seus preceitos. “O fato de ganhar esses prêmios todos não mudou em nada na minha vida, eu continuo da mesma forma, vivendo do mesmo jeito. O reconhecimento só me fez ter ainda mais responsabilidade. A luta continua. Eu não quero morrer matada, quero morrer na cama, sou feita do pó da terra, e é pra lá que voltarei.”
15 dias pela autonomia das mulheres rurais
Os papéis desempenhados pelas mulheres rurais são tão numerosos quanto suas lutas e vitórias. O que não faltam são histórias de vida inspiradoras. No entanto, ainda não possuem o reconhecimento merecido. Sofrem com o preconceito, com a desigualdade de gênero e com outros problemas que herdaram da vida. Ainda há um longo caminho para o equilíbrio de direitos e oportunidades entre homens e mulheres. A fim de mostrar que equidade de gênero e respeito são valores necessários cotidianamente, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou que 2018 seria o Ano da Mulher Rural.
Pensando nisso, a partir do primeiro dia do mês de outubro, iniciamos, no portal, uma série de matérias que fazem parte da Campanha Regional pela Plena Autonomia das Mulheres Rurais e Indígenas da América Latina e do Caribe - 2018. Serão 15 dias de ativismo em prol das trabalhadoras rurais que, de acordo com o censo demográfico mais recente, são responsáveis pela renda de 42,2% das famílias do campo no Brasil.