A vigília contra a fome
Publicado em 29 de outubro de 2013 no Valor Econômico
O significado da palavra transição não pode ser subestimado quando se analisa a convalescença da maior crise vivida pela economia mundial nos últimos 80 anos.
A queda expressiva verificada nas cotações agrícolas, um recuo de 20% no Índice de Preços de Alimentos da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Alimentação (FAO), em relação a agosto de 2012, é um pedaço dessa travessia.
Persistente há cinco meses, o recuo favorece os consumidores e não necessariamente penaliza os produtores. Na média, os índices resistem acima das margens de remuneração das últimas décadas.
A fotografia tirada no meio do caminho não expressa necessariamente o rosto do futuro. Ninguém pode prever com exatidão, o desfecho de uma travessia feita de baixa cotação das commodities, aperto de liquidez e restrição ao crescimento potencial das nações em desenvolvimento.
A natureza pró-cíclica dos mercados financeiros age, ademais, para reforçar a espiral descendente, assim como em 2007/2008 operou no sentido inverso quando a demanda adicional do etanol norte-americano sobre a principal safra de milho do mundo teve seu impacto altista exacerbado pelas apostas em índices e contratos futuros.
O efeito contagioso do tsunami especulativo --em fuga dos mercados convencionais-- afetou, então, de forma indiscriminada as cotações de alimentos em todo o planeta. As consequências foram exponencialmente superiores ao calibre da motivação original. E essa é uma característica da ‘financeirização’ das crises no mercado globalizado.
Hoje o quadro é diverso, mas o agravante financeiro persiste, embora com sinal inverso. Enquanto os fluxos das apostas se voltam para os juros de longo prazo nos EUA, o mundo se prepara para colher uma safra de grãos 8% superior a de 2012. No Brasil, por exemplo, a previsão de uma colheita 15,5% maior já provoca um recuo dos preços no atacado.
Praticamente concluída, a safra norte-americana de milho irradia igual efeito ao devolver o que a seca retirou do mercado em de 2012, quando o Meio-Oeste teve a pior colheita em 50 anos. Desta vez a produção foi recorde com alta de 27% sobre 2012, chegando perto de 350 milhões de toneladas de milho.
O efeito dessa alavanca na oferta mundial é previsível.
A recomposição dos estoques de passagem, que atingiram o menor nível da história em 2012, é uma delas. A perspectiva é de que fechem 2013 no nível mais alto em uma década, 23% superiores aos do ano passado.
A convergência de boas notícias traz alívio depois de um ano difícil. Mas não deve alimentar ilusões.
Os mercado agrícolas permanecem voláteis e, como recomendaram os líderes do G20, na sua reunião de São Petersburgo em setembro desse ano, ainda precisam de uma vigilância estreita e permanente.
A prontidão já mostrou sua eficácia.
No ano passado, quando a seca do Meio Oeste norte-americano atiçou a espiral especulativa, o Sistema de Monitoramento de Preços Agrícolas entrou em ação.
Criado em 2011 pelo G-20, esse sistema conta com um secretariado multi-agência liderado pela FAO e tem como objetivo dar maior transparência às condições reais dos mercados, dimensionar estoques e oferecer um espaço de coordenação entre os principais compradores e vendedores de cereais para evitar reações intempestivas e unilaterais, que levam ao pânico. Funcionou bem em 2012: em setembro do ano passado as cotações voltariam aos trilhos da estabilidade - e, agora, de queda.
A lição desse episódio é clara: sob o domínio da globalização financeira, uma seca que afete um produto em um único país pode desestabilizar os preços dos alimentos em todo o planeta. A coordenação política da segurança alimentar é a única força capaz de subtrair espaços à incerteza econômica e climática exacerbada pela transição em curso da crise mundial.
Esse foi o espírito predominante no encontro de ministros de agricultura de quase 40 países, realizado esse mês, na sede da FAO, em Roma.
Reforçar a governança mundial, criar estoques para garantir a segurança alimentar, incentivar o plantio, promover um salto na produtividade da agricultura familiar e fortalecer as redes de proteção social estão entre as ferramentas que podem gerar maior estabilidade e novos avanços na luta contra a fome.
A globalização financeira continuará a exercer sua devastadora capacidade de irradiar crises e potencializar os efeitos de uma safra mal sucedida em qualquer ponto do planeta.
Construir o contrapeso a esse carrossel desordenado é o grande desafio das agências internacionais.
Por isso, em paralelo à reunião ministerial de outubro, a FAO também abrigou a sessão do Comitê Mundial de Segurança Alimentar. Trata-se de um fórum único para debater a segurança alimentar e reúne diferentes atores: governos, setor privado, sociedade civil e movimentos sociais. É o principal amalgama de representação política do mutirão contra a fome no mundo nesse momento.
A natureza plural de sua composição permite-lhe exercer o papel indutor dos grandes consensos indispensáveis à construção de um contraponto de segurança alimentar à volatilidade do nosso tempo.
A FAO é uma das caixas de ressonância desse esforço, que contempla, de um lado, o monitoramento dos preços dos alimentos e, de outro, o apoio à organização dos que sofrem as piores consequências das irrupções altistas das cotações.
Não se trata de uma fórmula aritmética. Trata-se de um longo e incontornável empenho em erguer linhas de passagem contra a incerteza e a injustiça, até universalizar as políticas públicas indispensáveis à erradicação da fome em nosso tempo.