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Da horta para as ruas: a batalha diária de Francimária por dias melhores

Da horta para as ruas: Francimária inspira outras mulheres na região de Oiticica, no Ceará.
05/10/2020

Francimária Gomes de Oliveira tem 45 anos. Mais conhecida como Cimara, nasceu e cresceu na comunidade de Oiticica, em Tauá, a 331 km de Fortaleza, capital do Ceará. Ela trabalhou desde os doze anos na roça, com o pai, mas, ao se casar, aos quinze anos, passou a trabalhar com o esposo. Nessa época eles viviam em uma casa de taipa, mantida até hoje, ao lado da casa de alvenaria onde vivem, em que criaram seus filhos. “Pra poder conseguir uma de alvenaria deu trabalho”, conta.

Cimara mora com seus dois filhos, um jovem de 28 e uma de 25 anos, o esposo e dois netos. Se fossem depender do trabalho da roça, apenas, eles passariam muita necessidade: “Nós passava precisão, tinha dia que não tinha nem um pão pra comer, tinha que comprar fiado, não dava pra ir todo dia na ‘bodega’, não tinha mistura (carnes, ovos ou outra proteína) na nossa mesa todo dia”, afirma. Por isso, ela decidiu vender pastel, coxinha, enroladinho e cocada, que fazia e saía todas as tardes para vender de porta em porta. Assim, Cimara viu que tinha jeito para o comércio.

Preparou cinco canteiros e desenvolveu uma horta para vender a produção na localidade vizinha, chamada de Vila de Vera Cruz. “A vida começou a melhorar depois dos canteiros, porque só a roça não estava dando conta”, diz Cimara. Com a nova atividade e o aumento da produção, ela acessou o Programa de Aquisição de Alimentos (PPA) e, em 2004, se tornou a primeira agricultora da comunidade a comercializar seus produtos para o mercado institucional, o que foi um primeiro grande marco na mudança da sua vida. Com a nova atuação, toda a família passou a se envolver no plantio.

E Cimara, não satisfeita, decidiu inovar, e fez cartões para divulgar seus produtos. Com isso, ampliou suas vendas, passando a vender na localidade de Tauá. “Não sei ler, não, mas eu sou meio ativa pra isso aí. Fui tendo freguesia, fui trabalhando, trabalhando, até que o cacimbão secou, mas não baixei minha cabeça”, conta.

Mas foi com o trabalho para fornecimento ao PAA que ela juntou dinheiro para investir na propriedade: cavou um poço e instalou irrigação na horta. Essa atitude foi fundamental para dar mais estabilidade à sua produção e diminuir o peso do trabalho. E construiu a tão sonhada casa nova, de alvenaria, em 2005. 

Hoje Cimara fornece para o Programa alface, cheiro verde, mamão, bolo e doce e recebe o pagamento a cada três meses. Ela conta que chegou a receber R$ 4.500,00, mas hoje, com a diminuição do aporte financeiro por meio do governo federal, o valor diminuiu e passou a ser de R$ 2.500,00, por entrega.

Foi com esse trabalho voltado para o PAA que ela se tornou uma referência para as mulheres da comunidade. “Aqui, só quem tinha canteiro, horta, era eu. Eu fiz foi ativar, e hoje essa mulherada toda está tudo com um quintalzinho. E o meu, a cada dia, fez foi crescer mais. Meu trabalho ajudou, porque agora as mulheres, tudo, têm seu quintal, tudo vai vender, a maioria está no PAA. Da comunidade atinge umas vinte pessoas, todas são mulheres. Tinha marido que dizia: ‘você foi na cabeça dela e não vai receber dinheiro não’. Três meses e esse dinheiro não saía. Quando deu quatro meses, lá vai: R$ 4.500,00 caindo, todinho. O marido ficou satisfeito demais”.

No dia a dia ela e o marido trabalham na horta, que fica nos arredores de casa. Dia sim, dia não, ela vai para Tauá vender a produção. Além da venda para o PAA, ela entrega sozinha nas quitandas, nos mercados, e vende nas portas das casas cheiro-verde, pimentinha e mamão. À noite ela trabalha fazendo os doces e bolos, embalando, colocando os rótulos. A rotina é muito intensa, mas ela acredita que é com o resultado do seu trabalho que poderá garantir uma vida melhor para os seus/suas filhos/as.

O sustento da família de Cimara sai do quintal produtivo, onde ela também cria cinquenta galinhas: “A galinha eu vendo a 30 reais, ela em pé, mas depenada é 35 reais. Eu instalei meu poço com dinheiro de galinha também”. É ela quem faz toda a comercialização da produção, em casa, nos mercados nas vilas próximas e na sede do munícipio, tanto nos mercados maiores quanto de porta em porta. “Eu é que boto mais dinheiro aqui […]. Na comercialização, tudo é feito por mim. O povo vem comprar aqui. As vendas pelo WhatsApp é pras fruteiras, dos mercados, tudo é pelo WhatsApp, minha clientela todinha. O povo sabe que eu não sei ler e manda áudio. Eu digo: ‘manda áudio’. Atualmente, uma ida para Tauá faz mais ou menos R$ 200,00 por dia.

Sobre o significado de ser mulher, Cimara para, pensa e responde: "Ser mulher? Eu não sei. Eu, era pra ser um cabra macho, de tudo eu sei fazer. Eu tenho mais coragem do que certos homens. Tem certos homens que não fazem o que eu faço. O que eu nunca fiz foi brocar, mas o resto… de tudo eu sei fazer. E nem precisei ser homem. Ser mulher é ser disposta, corajosa, guerreira. Mulher é guerreira, que não baixa a cabeça pra nada. Eu já passei por tudo."

A experiência de Francimara envolve todo o processo de diversificação e fortalecimento das suas atividades produtivas, especialmente de horticultura, no quintal produtivo que, a partir do acesso à água e irrigação em uma região semiárida, tem colhido de forma continuada e com qualidade, o que garante, a partir de diferentes formas de comercialização.

A agricultora passou a ser referência para as outras mulheres da comunidade por sua dedicação e luta. Cimara conseguiu melhorar a qualidade de vida de toda a família e envolver a todos/as em uma atividade produtiva que era considerada apenas como trabalho de mulher, mas era invisibilizada e desvalorizada.

Conheça o Projeto Paulo Freire

Presente em 31 municípios cearenses, o Projeto Paulo Freire (PPF) atua para reduzir a pobreza e para o desenvolvimento de seiscentas comunidades rurais com os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado. Suas ações buscam favorecer, desde 2015, o capital social e humano, incluindo produção sustentável das famílias, buscando o aumento da renda a partir de atividades agrícolas e não agrícolas.

Com foco prioritário nas/os jovens, nas mulheres e nos povos e comunidades tradicionais, sua atuação abrange seis territórios do Ceará: Cariri, Sertão dos Inhamuns, Sertão dos Crateús, Sertão de Sobral, Serra da Ibiapaba e Litoral Oeste/Vales do Curu e Aracatiaçu.

O trabalho tem sido desenvolvido a partir de dois componentes: o Desenvolvimento de Capacidades e o Desenvolvimento Produtivo e Sustentabilidade Ambiental. Para desenvolver capacidades são realizadas atividades de formação para acesso às políticas públicas, assessoria técnica, capacitação, mobilização e controle social, formação de jovens para atividades econômicas e acesso a terra, e qualificação dos assessores técnicos. Quanto ao desenvolvimento produtivo e à sustentabilidade ambiental, busca-se financiar os investimentos produtivos como estratégia de apoio à agricultura familiar, com base nos princípios da convivência com o semiárido e agroecologia.

Cáritas Diocesana de Crateús

Responsável pela Assistência Técnica Contínua (ATC), a Cáritas Diocesana de Crateús é a organização contratada pelo Projeto Paulo Freire para acompanhar Francimara e sua família, garantindo resultados exitosos nas experiências desenvolvidas na propriedade.

É uma organização que, junto com a Cáritas Brasileira, realiza ações de formação e organização comunitária, defesa e conquista de direitos básicos, controle social das políticas públicas, além de articulação e mobilização social. Prioriza o incentivo à produção agroecológica, comercialização justa e solidária, educação contextualizada de convivência com o semiárido e educação ambiental (resíduos sólidos). Sua experiência de desenvolvimento e atuação em projetos de convivência com o semiárido – muitos deles vinculados à Articulação do Semiárido (ASA), tratando problemáticas da região – garante a busca efetiva por uma vida mais justa e harmônica nas comunidades rurais.

Projeto Paulo Freire e a garantia de assessoria técnica mudaram a vida de Francimara
Em 2016, o Projeto Paulo Freire, executado pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Governo do Ceará, a partir da parceria com o FIDA, chega à comunidade de Oiticica e à vida de Cimara. Por meio da Associação dos Moradores de Milagres, implementa o seguinte Plano de Investimento: beneficia 95 pessoas, sendo que 39 são mulheres e, entre elas, está Cimara. As ações previstas para o investimento na produção das hortaliças são:

A partir da assessoria possibilitada pelo PPF, Cimara conseguiu identificar que houve mudanças ambientais significativas, como o aumento da área de mata, depois que passaram a não desmatar e a plantar árvores frutíferas, para ter mais sombra e mais produção. E a plantação de pimenta malagueta foi uma inovação que hoje é usada como defensivo natural na horta.

Em relação ao acesso à água na unidade produtiva, mesmo que Cimara já tivesse duas cisternas de placa, uma cisterna enxurrada e um cacimbão, quando houve o aumento da renda gerado pela horta, a partir do PPF, ela pôde investir em média R$ 17 mil no escavamento de um poço e na instalação de um sistema de irrigação. Atualmente, está sendo cavado mais um poço, previsto no Projeto de Investimento, para toda a comunidade.

Foi com a chegada do projeto que ela conseguiu diminuir as pragas e doenças da horta, a partir do aprendizado de novas técnicas como a horta suspensa e o cultivo de plantas que ajudam no controle dos insetos, além do uso de defensivos naturais, sempre em busca de maior equilíbrio biológico na produção.

“Ele [técnico] chega, fica ajudando a gente a fazer composto, a gente não tinha costume de fazer composto. Antes eu botava o estrume aí, eu só aguava pra tirar o “mijo”, e já jogava no canteiro. E agora não. Com o composto, os coentros são sadios, não adoecem de jeito nenhum e eles, num instante, crescem. Depois do Paulo Freire eu mudei os canteiros, o jeito de fazer. Antes eu fazia rente com o chão, agora é altão, os canteiros, pra água ficar naquelas valetas pra segurar molhado. O produto que eu uso na horta é o detergente, que nós faz com a pimenta, o fumo, que eles ensinaram e eu sei que mata tudo as “pressigas” [insetos/pragas].

As mulheres da comunidade conseguiram, a partir das orientações, aumentar a quantidade e a qualidade da criação de animais do quintal, como das galinhas e porcos, através da melhoria do manejo alimentar e sanitário, entre eles a vacinação de pintos, o uso de limão na água das galinhas contra o gogo e a limpeza periódica dos bebedouros feita com reutilização de garrafas PET.

Houve melhoria na fertilidade do solo, com a diminuição das erosões e contaminações, com o uso da cobertura morta e diversificação dos plantios no quintal, sempre utilizando composto orgânico, no qual se reaproveita tudo e economiza na compra de sementes. Mesmo diminuindo a produção de lixo, a destinação correta segue como um desafio, principalmente para plásticos.
As mudanças nas condições de vida da família de Cimara foram muitas. Com o aumento nas vendas, passaram a adquirir novos equipamentos domésticos. Compraram uma máquina forrageira, um tanquinho para lavar roupa e instalaram sinal de internet.

Para que o filho de Cimara pudesse pesquisar os assuntos do curso de Técnico Agrícola, na Escola Família Agrícola de Independência, o acesso à internet se tornou uma necessidade. E a possibilidade de proporcionar essa facilidade ao filho foi, para ela, uma grande conquista.

Com a renda dos quintais, hoje, ela consegue manter o filho na escola, que funciona em sistema de alternância, pagando as taxas necessárias e a gasolina para o deslocamento quinzenal até o município de Independência, que fica amais de 100 km de Tauá. “Eu tenho tanto diploma de cursos, tenho de bolo, que nós já tivemos, do Paulo Freire, de pão caseiro, de sequilho. Já tivemos reunião da associação pra falar dos direitos das mulheres, só com mulheres. Nós ‘tava’ imaginando nós montar uma padaria”, lembra Cimara.

A agricultora conta que se sente feliz por seu trabalho estar sendo reconhecido. E isso se expressa com as visitas de intercâmbios em sua unidade produtiva, com a vinda de pessoas de outras comunidades e também de outros estados. Para ela, um momento marcante foi o recebimento, pelas mãos do prefeito de Tauá, da premiação “Mulheres Empreendedoras”, dado pela Associação Comercial do município.

Sobre a questão da violência contra as mulheres, Cimara diz que percebe diminuição dos casos, porque, segundo ela, “hoje as mulheres já não são dependentes do marido” – uma afirmação que expressa a compreensão de que a autonomia econômica é um caminho para o enfrentamento à violência contra as mulheres.

Os resultados econômicos podem ser registrados com o aumento do autoconsumo dos alimentos produzidos no quintal, como coco, mamão, hortaliças, limão, couve, alface, entre outros, antes comprados no mercado. Com isso, nota-se que o aumento nas horas dedicadas ao trabalho é compensado pela ampliação da renda familiar.

O acompanhamento do Paulo Freire me ajudou a ter renda, porque aqui tudo que é recebido é dos canteiros. Não tem outro dinheiro que entra de outro canto. Tem gente que não acredita, já me disseram: “Mulher, ninguém vive de canteiro, não!”. E eu respondo: “Mulher, pois eu vivo é da horta lá de casa. Não entra dinheiro de outro canto. Eu não tenho pensão, eu não tenho nada de salário. Tudo é da horta”. Antes do projeto a gente conseguia um salário mínimo da época, e agora, depois do projeto, chega a mais de dois mil por mês.

Com o investimento do Projeto Paulo Freire e a assessoria técnica contínua, as possibilidades de comercialização se ampliaram: Cimara tinha apenas dez canteiros, e hoje ampliou para quarenta, com perspectivas de ampliar para cinquenta.

O aumento nas contas, recorrentes do contexto político e econômico do país, com o consumo de energia, internet, gasolina e passagem, é notável, mas a agricultora tem conseguido otimizar seu tempo de trabalho com o uso da máquina forrageira e com a instalação do sistema de irrigação. E tende a melhorar com a aquisição de novos equipamentos, prevista no Plano de Investimento do projeto.

O resultado do trabalho é extremamente positivo, tanto para Cimara e sua família quanto para as demais beneficiárias da comunidade, não apenas por ter se tornado um exemplo, mas pela possibilidade de pagar diárias a agricultores locais, duas ou até três vezes por semana, para trabalharem na horta.

Mas Cimara não deixa de sonhar com mais mudanças. Ela gostaria de ter, ainda, uma casinha para as galinhas, aumentar a produção da horta e, quem sabe, vender seus produtos para a merenda escolar, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

15 dias de iniciativas inspiradoras

A história de Francimária Gomes de Oliveira, enviada pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), faz parte da ação “15 dias de iniciativas transformadoras”, da campanha #MulheresRurais, mulheres com direitos.

Durante os próximos dias, outras organizações parceiras da campanha irão compartilhar histórias de mulheres rurais promotoras da alimentação saudável, guardiãs da terra, líderes e empreendedoras, com base em três eixos principais: direitos e autonomia econômica; papel produtivo em sistemas agroalimentares; redução de lacunas e uma vida livre de violência. No dia 15 de outubro, encerra-se a ação com a celebração do Dia Internacional das Mulheres Rurais.