FAO no Brasil

Francisca Alves e a luta contra a violência estrutural no campo

10/10/2018

Francisca Alves Ribeiro acordava antes do sol se desenhar no horizonte, com o primeiro filho embrulhado em um pano num dos braços e a enxada no outro. Caminhava até uma árvore baixinha que fazia uma sombra boa e lá deixava o filho, ainda bebê, no chão sob a sombra. Empunhava a enxada e ia para a roça de frente a árvore trabalhar, fazendo pequenos intervalos para amamentar ou tirar formigas e insetos que subiam no menino.

Era com o filho a tiracolo que ela buscava o querosene na cidade mais próxima para poder ter luz durante a semana; com ele que ia cortar lenha no mato para alimentar o fogo das panelas; que carregava litros de água na cabeça, por quilometros, para garantir a água do banho, da limpeza, da comida e da sede da família.

Com a chegada de duas novas crianças, esse mesmo filho que acompanhava a mãe quietinho debaixo da árvore, passou a cuidar dos irmãos enquanto ela ia garantir o sustento. “Cansei de deixar meus filhos presos em casa enquanto saia para o mato. Deixava as panelinhas de comida cozida prontas. O mais velho cuidava dos menores, porque o marido nunca ajudava. Então eu o larguei. Criei meus filhos sozinha com muita luta.  Ate hoje é assim no campo, a mulher trabalha o dobro mas ganha a metade. Ela não tem voz. Não nos dão credibilidade”, avalia Francisca, hoje com 58 anos.

Segundo a agricultora rural, que hoje cria cabras e abelhas no interior da Bahia, a chegada dos programas sociais melhorou as condições de vida das mulheres, com a construção de cisternas e a chegada da energia elétrica, por exemplo. Ainda assim, mesmo com avanços sociais que facilitaram a rotina, a forma como a mulher era encarada não avançou e a violência silenciosa que assolou gerações e gerações de mulheres rurais, segue como uma triste realidade.

Francisca se rebelou contra à falta de oportunidades e foi para a cidade tentar um cargo na política. Fez cursos, estudou sobre gestão orçamentária e, depois de algumas tentativas, se elegeu prefeita da cidade de Carinhanha, na Bahia. Lá, ocupou 50% da prefeitura da cidade com mulheres e ganhou a antipatia dos políticos locais. “A violência está com a gente o tempo todo. Na forma como te enxergam, na duvida que têm das suas potencialidades, na dificuldade que as mulheres enfrentam para obter crédito, para ter uma terra. Nas tarefas domésticas que não são divididas. Uma mulher do campo falar de política parecia uma afronta a masculinidade deles. Não nos davam o direito de pensar. O machismo é um problema muito sério e triste do mundo rural”, lamenta.

A garantia dos direitos das mulheres rurais é um pilar fundamental do desenvolvimento sustentável. As desigualdades de condições no acesso, posse e uso da terra com as quais lidam diariamente são consequencias da violência estrutural que se revela nas discrepantes oportunidades que homens e mulheres encontram em seus caminhos. Nas áreas rurais as desigualdades de gênero persistem também no acesso aos bens de produção, assistência técnica e recursos naturais.

 A essas limitações acrescenta-se a exclusão que as mulheres vivem nas oportunidades de empregos, bem como o baixo valor de seu trabalho produtivo e suas contribuições na formação e reprodução do tecido social. Além disso, as mulheres assumem uma carga laboral não remunerada muito maior do que a dos homens – um dado que é uma realidade em todos os países em desenvolvimento.

 Assim como as mulheres vêem sua autonomia econômica ameaçada, elas também sofrem desigualdades e ameaças a sua autonomia física e política, sendo mais vítimas de violência e também tendo menos oportunidades de exercer lideranças e participar da vida pública de suas comunidades.

Menos oportunidades para as mulheres são menos oportunidades para o campo: se as políticas estatais orientadas para o desenvolvimento rural não reverterem as desigualdades de gênero, então elas estão piorando a exclusão das mulheres. “O meu sonho é que toda mulher conseguisse encontrar, dentro delas, a força para se empoderar. Eu não tive quem me dissesse que eu era capaz. Apanhei de marido, fui ameaçada de morte várias vezes, sempre estive cercada de pessoas que diziam que não tinha valor. Mas me empoderei porque sabia que tinha esse valor. E se conseguimos empoderar cada mulher rural, faríamos uma revolução”, acredita a agricultora.

15 dias pela autonomia das mulheres rurais

Os papéis desempenhados pelas mulheres rurais são tão numerosos quanto suas lutas e vitórias. O que não faltam são histórias de vida inspiradoras. No entanto, ainda não possuem o reconhecimento merecido. Sofrem com o preconceito, com a desigualdade de gênero e com outros problemas que herdaram da vida. Ainda há um longo caminho para o equilíbrio de direitos e oportunidades entre homens e mulheres. A fim de mostrar que equidade de gênero e respeito são valores necessários cotidianamente, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou que 2018 seria o Ano da Mulher Rural.

Pensando nisso, a partir do primeiro dia do mês de outubro, iniciamos, no portal, uma série de matérias que fazem parte da Campanha Regional pela Plena Autonomia das Mulheres Rurais e Indígenas da América Latina e do Caribe - 2018. Serão 15 dias de ativismo em prol das trabalhadoras rurais que, de acordo com o censo demográfico mais recente, são responsáveis pela renda de 42,2% das famílias do campo no Brasil.